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Angra Jazz 2013

 

Uns momentos antes de começar o festival, alguém que tinha assistido ao sound check de Carla Bley conversava algo surpreendido que a pianista tinha aproveitado o momento para ensaiar vários temas, tendo até alterado algumas pautas. Habituado à rigidez da música clássica, o ouvinte estranhava que um músico experimentado aproveitasse os últimos momentos para ensaiar com o grupo, tendo até observado que, num dos temas, a pianista tivesse duas pautas diferentes que confrontava e alterava, o que atribuiu à pouca rodagem do grupo e até a alguma leviandade de Carla Bley.

É claro que este meu amigo ignorava que este trio – que existe como tal desde há mais de quinze anos - é composto de três músicos superlativos e que se conhecem bem.

E se o Jazz é música em movimento, a personalidade singular, inquieta, de compositora, de Carla Bley, autoriza-lhe reescrever os temas de acordo com a disposição. E estou certo que a beleza da Terceira e a hospitalidade com que foi acolhida a terá inspirado.

Carla Bley
Serve este preâmbulo como introdução do concerto do trio de Carla Bley, mas também de todo o festival, já que todos os grupos tocaram material ensaiado ou gravado recentemente.
Carla Bley é especialmente reconhecida como compositora e como directora de orquestra, sendo relativamente ignorada como pianista, e esta formação coloca o seu piano em evidência. Carla nunca se expõe, de facto, enquanto virtuosa do piano, preferindo revelar-se na subtileza das composições e no humor. «Vashkar», um clássico dos anos 60, de inspiração oriental; o tríptico «A Girl Who Cried Champagne» (1969); «Valse Sinistre», um bailado; o divertido «Awful Coffee»; ou o clássico de Monk «Misterioso» – o único tema alheio -, revelaram o lirismo e o engenho que transporta nos dedos.
A noite ia já longa quando Carla regressou para um novo clássico de indizível nome, «Utviklingssang», evocação de uma memória, cálido e terno, belíssimo.
Uma nota para a prestação de Steve Swallow e Andy Sheppard (que alternou entre o tenor e o soprano). É a eles que é relegado o grosso do improviso, e eles são dois inspirados genuínos cúmplices da música de Carla Bley.

Orquestra Angra Jazz
A primeira noite tinha começado horas atrás com a Orquestra Angra Jazz, ex libris da Associação Angra Jazz que organiza o festival. A orquestra tem procurado ultrapassar os problemas que advêm da insularidade, na injecção de sangue novo e no treino de solistas. Este ano a orquestra estava acrescida de uma voz, Manuel Linhares, que ensaiou alguns temas com a orquestra. A orquestra revelou ter crescido em punch e volume de som, mas alguma rigidez nem sempre se adaptou à forma de cantar de Manuel Linhares. Linhares que não conseguiu esconder o nervosismo em palco, esteve sempre melhor nos tempos lentos onde se afirmou nos graves, em «The Shadow of Your Smile» e «Tender Trap». A orquestra, fluida, que claramente perdeu o medo de tocar, revelou uma pianista, Antonella Barletta, sólida e assertiva, e dois solistas, Paulo Borga, no trompete, e Rui Melo no saxofone.
Momento feliz foi ainda a estreia de um quinteto saído da orquestra que dá agora os primeiros passos, e que interpretou um tema popular, «O Sol», com arranjo jazzy.

Fred Hersch
Observei há algum tempo que o piano de Fred Hersch – que tocou no início da segunda noite do festival - se tornou verdadeiramente enciclopédico. As referências, que assomam sem despudor num discurso elegante e virtuoso, são com frequência explícitas e não se resumem à história do piano. É por isso que Hersch evoca Thelonious Monk e Monk por Bud Powell, Jobim e Bill Evans, Ornette Coleman, Miles Davis e Antonio Carlos Jobim, cruzando originais e clássicos, aglutinando formas e heranças aparentemente antagónicas.
A segunda evidência que podemos observar sobre o concerto é a coesão do trio, a empatia que se estabelecem sobre as personalidades bem vincadas de cada um dos membros do trio.
As personalidades nunca se dissolvem no todo; se Hersch é, como disse, enciclopédico, a bateria de Eric McPherson é sensível e irrepreensível na marcação, numa forma que deve tanto ao hardbop quanto ao mestre das escovas Shelly Manne. John Hebert enfim, um monstro do contrabaixo, exuberante (mas não exibicionista) e criativo, pareceu contrariar a sua conotação com a vanguarda, revelando-se à-vontade na interpretação dos standards. Mas os grandes músicos são mesmo assim.
Fred Hersch tocou temas do premiado Alive at The Vanguard, «World», «Sad Poet» (dedicado a Tom Jobim, e eu diria que também a Tommy Flanagan), «Skipping», «Dream of Monk», «Lonely Woman/ Nardis» (Ornette, Miles Davis), «Jackalope», entre outros, no que foi um dos mais belos concertos do festival.

Ray Anderson's Pocket Brass Band
A segunda noite completou-se com a Pocket Brass Band de Ray Anderson, um trombonista que é, indiscutivelmente, o mais completo executante do instrumento.
Anderson é um músico exuberante e voraz na forma como canibaliza géneros e como se expõe. Temo-lo visto em contextos e formas diferentes, entre o mais vanguardista e o mais popular. A Angra ele trouxe um dos seus projectos mais epidérmicos, numa evocação do Jazz de New Orleans, mesmo se se referencia ao seu passado de Chicago (explícito no nome do disco que veio tocar, o Sweet Chicago Suite).
A banda é constituída pelo seu trombone, o sousafone de Matt Perrine (instrumento que deve o nome ao seu inventor, o americano açoreano descendente John Philip Sousa a quem foi chamado de «o rei das marchas»), o trompete do veterano Lew Soloff, e à bateria de Eric McPherson, que substituiu Bobby Previte da formação original.
Anderson e Lew Soloff - que se revelou pela acutilância e força do seu trompete, a desmentir os 69 anos de idade -, estiveram em evidência, enquanto o sousafone cumpriu veloz e eficiente o seu papel nos graves. A nota menos boa foi para a bateria que esteve quase sempre desajustada, prolongando o papel da bateria mais sensível que tinha tocado no trio de Hersch. Faltou som de caixa, faltou o rugor característico da música de New Orleans, o que se tornou evidente no encore, quando o quarteto percorreu o recinto em torno do público, com McPherson a tocar uma simples tarola; e este foi o seu momento mais acertado.
Ainda assim, um concerto justificadamente aclamado pelo público, que celebrou com os músicos a força de um Jazz excessivo e alegre.

Carlos Bica & Azul
O Sábado começou com o Azul de Carlos Bica, trio que temos visto tocar com regularidade.
A música de Carlos Bica, um dos mais singulares músicos nacionais, é profundamente influenciada pela pop anglo-saxónica, mas muitas das suas melodias contêm uma melancolia – muito nacional, diríamos - que tem tanto de simplicidade quanto de beleza. O Azul, que existe há mais de quinze anos, completa-se com dois músicos de excepção, Jim Black – um verdadeiro monstro da bateria – e Frank Mobus, um guitarrista telúrico, improvisador inspirado. O grupo tocou temas do reportório que o vem acompanhando, em especial do último disco, «Things About».
Música contagiante, o Azul levou a sala ao rubro, alternando entre a beleza de «Canção Vazia» ou «Vale» e a energia de «Pastilha elástica» ou «Joly Jumper». O veludo, o vitríolo e o humor da guitarra de Mobus desafia a bateria do incansável Jim Black sob a batuta e a bonomia do discreto Carlos Bica.

Cecile McLorin Salvant
O festival completou-se com a estreia em território nacional da jovem Cecile McLorin Salvant, sobre quem recaíam as maiores expectativas.
Num momento em que a maior parte das cantoras privilegia a técnica e despreza a emoção (e com isso tendem a dissolver-se numa mole indistinta), é um prazer ouvir uma voz que recupera o blues e a soul e não tem medo de arriscar. Cecile Salvant possui uma excelente técnica e dotes vocais inquestionáveis – indo dos agudos aos graves sem dificuldade numa mesma frase – e arrisca a reinventar um «What a Little Moon Light Can Do», sem nunca procurar o bonitinho.
Questionável será a sua recorrência por um reportório mais Broadway e vaudeville, que se justificará talvez na esquiva aos temas mais familiares – vulgares - às cantoras, mas mesmo assim ela empresta-lhes (a essas canções) uma alma que há muito não ouvíamos. Cecile McLorin Salvant é arrebatadora nos blues (Bessie Smith!) e na subversão dos standards, onde se lhe distingue já – apesar da juventude – uma voz própria.
Cecile McLorin Salvant terá talvez ainda um longo caminho a percorrer, mas merece desde já a atenção dos amantes da música negra e protagonizou um dos momentos altos do Angra Jazz.

Com a promessa de tudo fazer para que o próximo ano o festival se confirme como um dos grandes festivais de Jazz nacionais, o Angra Jazz 2013 despediu-se.

 

Qui 3 Angra do Heroísmo Grande Auditório 21.30 Orquestra Angrajazz Pedro Moreira (dir), Claus Nymark (dir), Manuel Linhares (voz), Carolina Meneses (cl), José Pedro Pires (clb), Rui Borba (sa), Davide Corvelo (sa), Rui Melo (st), Filipe Gil (sb), Mauro Lourenço (st), Márcio Cota (t), Paulo Borges (t), Clésio Fagundes (t), Bráulio Brito (t), Roberto Rosa (t), João Rocha (t), Edgar Marques (tro), Artur Ferreira (tro), Gonçalo Ormonde (tro), Nuno Machado (tro), Manuel Almeida (trb), Adriano Ormonde (trb), Antonella Barletta (p), Paulo Cunha (g), Antero Ávila (b-el), Nuno Pinheiro (bat)
Carla Bley Trio Carla Bley (p), Steve Swallow (b-el), Andy Sheppard (s)
Sex 4 21.30 Fred Hersch Trio Fred Hersch (p), John Hebert (ctb), Eric Mcpherson (bat)
Ray Anderson's Pockett Brass Band Ray Anderson (trb), Lew Soloff (trb), Matt Perrine (sousa), Eric McPherson (bat)
Sáb 5 21.30 Carlos Bica Trio Azul Carlos Bica (ctb), Frank Mobus (g), Jim Black (bat)
Cecile McLorin Salvant Quartet Cecile McLorin Salvant (voz), Aaron Diehl (p), Paul Sikivie (ctb), Lawrence Leathers (bat)

Olhando a programação do Angra Jazz 2013, três coisas saltam à vista de imediato: em primeiro lugar a diversidade, em segundo a preocupação em trazer a Angra o melhor do Jazz que se faz na actualidade a nivel internacional, e em terceiro lugar o investimento no Jazz nacional e terceirense. Enfim três pequeninas coisas que colocam o Angra Jazz na primeira linha dos festivais de Jazz nacionais.
E perante uma programação de pesos-pesados, o destaque torna-se difícil. Ainda assim, a minha grande expectativa vai para a jovem Cecile McLorin Salvant, que encerrará o festival.

O Jazz da Terceira abre as hostilidades já na próxima quinta-feira com a menina dos olhos do festival, a Orquestra Angra Jazz, que este ano contará com a voz de Manuel Linhares. A direcção estará, como tem vindo a acontecer, a cargo de Pedro Moreira e Claus Nymark.

Saltando para o terceiro dia, a representação nacional completa-se com um grupo singular: Carlos Bica e Azul, que é também um dos nossos grupos mais internacionais, e não apenas pela formação. Apenas um dos lados do trio é nacional, mas o projecto e a direcção é do contrabaixista Carlos Bica. Ao seu lado estarão dois instrumentistas superlativos: Jim Black e Frank Mobus, bateria e guitarra.

A noite do primeiro dia completa-se com o trio de Carla Bley, compositora, chefe de orquestra e - injustiçadamente menorizada como – pianista.
O primeiro trio a actuar no festival conta com a cumplicidade de Steve Swallow, um virtuoso numa categoria com poucos contribuintes: o baixo eléctrico de cinco cordas, e o saxofone de Andy Sheppard.
O trio acaba de editar o segundo disco, o enésimo da profícua Carla Bley.

A sexta-feira começa com outro trio, o Fred Hersch Trio; este um mais clássico trio de piano, baixo e bateria.
Pianista sensível e inspirado, estará em Angra do Heroísmo à frente do trio de eleição, com John Hebert e Eric Mcpherson.

A noite completa-se com a Ray Anderson's Pockett Brass Band; um simples quarteto que ameça incendiar a sala de Congressos de Angra. A «Pocket» pratica uma forma de New Orleans evoluído, e dificilmente alguém na sala ficará indiferente à alegria e exuberância da música de Ray Anderson.

Depois de Carlos Bica, o festival encerrará com um espectáculo em que deposito imensas expectativas, o concerto Cecile McLorin Salvant.
A jovem cantora, que se estreia em palcos nacionais, não tem cessado de receber elogios da imprensa internacional. Com uma voz e uma expressão que remete para as grandes cantoras na linha de Ella, Sarah Vaugham, Bille Holiday ou Betty Carter, mas também, no mergulho na música popular negra, no blues, no soul e até no gospel, Carmen McRae e Dinah Washington; Cecile McLorin Salvant tem arrasado.
Aguardemos pela prova de fogo do palco.

Três dias, seis concertos, o grande Jazz regressa a Angra do Heroísmo.

Setembro de 2013